quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

PALCOS DA INFÂNCIA - LÚCIA HELENA PEREIRA



 “Onde as lâmpadas ardem, ficam manchas de óleo; onde se acendem velas, ficam sinais de cera; só as luzes do céu esplendem puras e imaculadas”. Goethe

 • Nesta página protagonistas das histórias de minha infância. Luzes acendendo caminhos e colorindo as paisagens de minhas diletas lembranças. Por conseguinte, aos que me permitiram guardar e relembrar:

 • Tributo aos CHIQUINHA E BILILIU (companheiras de infância) PIÔ E MAROCA (contadoras de estórias) 
 Dona BILUCA (rendeira de almofadas de bilros) 
 QUINCAS E LEBRE (empregados da casa fascinados pelo trem) “Compadre” JOAQUIM GOMES (tocador de rabeca).

No vale verde deixei as mais belas e ricas imagens, estórias, paisagens e vozes que ainda vivem em mim e vão reabrindo cenários festivos, como desenhos animados, alegrando e colorindo a minha tela mental. Fiz questão de transcrever os vocabulários - bem jocosos - pela fidelidade às minhas lembranças e para honrar aqueles que deram inspirações às minhas recordações. Portanto, pela poesia que flui dessa linguagem e me leva a uma época distante (e tão próxima)! 

Aqui, nestas breves páginas, o prazer de reviver um tempo cheio de amenidades. A certeza de que, nos protagonistas da história dessas estórias está o mais puro ouro da ingenuidade, que é o poema dos que se fizeram maiores! 

  PIÔ E MAROCA 
 Nesse gigantesco mundo lobatiano, não poderiam faltar as contadoras de estórias: Piô e Maroca. Duas figuras humanas sempre relembradas por mim, pelos familiares, amigos e conterrâneos, quando abordamos os bons tempos em Ceará-Mirim. 
As duas senhoras moravam perto da nossa casa. Eram solteiras e deviam ter, àquela época, entre 50 a 60 anos. Ninguém as via pela manhã, lembro-me da porta verde-ferrugem da casa delas, geralmente trancada durante o dia. Quando o sol vespertino começava a desmaiar no horizonte, lá estavam as bondosas senhoras, com os vestidos iguais, redinhas nos cabelos, sandálias de “rabicho” e as cadeiras na calçada (esse “palco” era armado todas as tardes). Elas sentavam-se em cadeiras de balanço e colocavam mais quatro cadeirinhas de vime à disposição dos que chegavam. Quando a platéia aumentava, o chão era uma boa opção. Só começavam a contar as estórias, quando todos já haviam se sentado, afinal, não gostavam de ser interrompidas. Piô respirava fundo, dava uma revirada nos olhos e dizia: “Um dia, bem distante, num lindo reinado, num castelo d´ouro...” e, assim por diante podíamos compartilhar das suas ingênuas narrações. Quando Piô se cansava, Maroca continuava e, ao final da tarde, havíamos chorado tanto que mamãe vinha abordá-las: “O que será que vocês contaram que as meninas ficaram tão comovidas, minhas amigas?” Piô respondia com meiga voz: “Ixe! Só istorinhas inucentes qui dão cumixão na aima (alma) da gente...” As minhas irmãs,  mais velhas do que Iara e eu, também gostavam da companhia delas e sempre lembravam que ambas costumavam tomar café e emborcar as xícaras usadas sobre os pires, numa mesinha ao lado do tanque de alvenaria, com água de um poço no fundo do pequenino quintal. As minhas irmãs acabavam lavando a louça.
 Diante da casa, bem no meio da rua, haviam várias árvores onde os pássaros descansavam ao crepúsculo. Esses pássaros, humildes pardais, tinham estórias fantásticas, inventadas por elas e nomes bem diferentes, despertando a nossa curiosidade: “ispia só, aquele açulá (e apontavam para qualquer um que pousasse num galho) veio das Oropa e é bem cunhicido pulo nome de Artrimbico; o de lá (a gente olhava e via outro pardal) veio das terra dos vurcão e todo mundo sabe qui si chama Runã; tem outro, o qui tá bem incuído, qui veio nu´a rivuada dos mericano e pur sê bem sabidim se chama Dragonim; mais tem um, santo Deus, atrivido qui nem presta, vive cumendo as migaia dos rico e veio das banda dum castelo lá das terras de Moisés, pegou inté o nome de Salumão”...e, assim por diante os pardais eram nomeados e seus currículos discursados pelas inocentes e bondosas senhoras, que, bem antes das dezenove horas já estavam roncando nas cadeiras. Lembro do ronco de Piô, agudo e forte, nos intervalos entre a inspiração e expiração. Nessas alturas, colocávamos os xales em seus ombros e saíamos devagarinho. Deixa que esses roncos eram só disfarces para que fôssemos embora, pois, mal nos movimentávamos, víamos seus olhos se abrindo e elas fingindo que estavam piscando: "rão simbora mininas, tamo cum sono dimais chega as pestana dos óios da gente tão pregando nas orêias”...

Saí dos vale prestes  completar sete anos. Nunca mais ouvi suas vozes e nem si como acabaram. ficaram as "istórias" que  trago em minhas saudades!

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